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Como a esquerda britânica pavimenta o caminho da extrema direita

09/06/2025 16h06

A extrema direita não cresce sozinha - ela é também normalizada. O Partido Trabalhista britânico, sob Keir Starmer, parece acreditar que pode conter esse avanço adotando seu vocabulário e sua visão de senso comum ? mas, ao fazer isso, só acelera o que diz combater.

O primeiro-ministro britânico Keir Starmer gosta de dizer que está do lado do "senso comum". A frase parece inofensiva, mas revela muito sobre a estratégia atual do Partido Trabalhista ? uma estratégia que aposta que, para conquistar votos, basta se aproximar do discurso da extrema direita, como se o povo já pensasse como ela. Mas o senso comum não está dado de antemão: ele é sempre construído. E ao presumir que esse senso comum é contra a imigração, contra ações afirmativas, contra o Estado social, o Labour não disputa ideias ? apenas cede terreno.

Quando Starmer venceu as eleições no ano ado, muitos celebraram o fim do desgaste acumulado de sucessivos governos conservadores. Mas desde o início, era possível perceber as limitações da cúpula trabalhista, que ara os anos anteriores removendo qualquer vestígio da agenda progressista do antigo líder Jeremy Corbyn e expurgando dissidentes à esquerda. Esse gesto, apresentado como sinal de responsabilidade, já era um prenúncio do que viria: concessões sistemáticas à retórica da extrema direita.

Essa naturalização do discurso adversário é o que se chama de "normalização". Ela ocorre, primeiro, quando a própria extrema direita tenta parecer respeitável ? como se soubesse "comer com talheres", suavizando o tom e se apresentando como porta-voz da "maioria silenciosa". Mas o o mais decisivo se dá quando partidos tradicionais aceitam que a extrema direita representa o tal "senso comum" ? e, a partir disso, adotam suas ideias, seu vocabulário e suas prioridades. Assim, acabam legitimando esse discurso. E isso não é exclusividade da direita.

Se os conservadores britânicos flertaram abertamente com o extremismo sob Boris Johnson, Liz Truss e Rishi Sunak ? que fez da luta contra a imigração sua principal bandeira ?, agora é o Partido Trabalhista que parece decidido a seguir o mesmo caminho. Em sua tentativa de se reconciliar com um pretenso "centro" dito "moderado", o governo liderado por Keir Starmer tem mantido cortes em programas sociais, retrocedido em políticas de inclusão ? como as ações afirmativas, tachadas de "woke" ? e endurecido o discurso contra a imigração.

Como se não bastasse, Starmer elogiou publicamente a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni ? cuja trajetória vem diretamente da tradição neofascista ?, apontando sua política anti-imigração como exemplo para a Europa. Em maio, afirmou que a Grã-Bretanha corria o risco de se tornar "uma ilha de estranhos", ecoando, talvez de forma involuntária, o célebre discurso de Enoch Powell, um dos fundadores do racismo político moderno no Reino Unido.

Essa guinada busca reconquistar os votos populares que teriam migrado para partidos de extrema direita como o Reform UK, de Nigel Farage. Mas essa aposta repousa sobre uma série de equívocos. O primeiro é uma caricatura paternalista da classe trabalhadora, tratada, ainda que implicitamente, como inerentemente branca e reacionária ? o que os dados não confirmam: os trabalhadores britânicos são diversos, tanto em origem quanto em posicionamento político.

Discurso linha dura

Além disso, embora a esquerda tenha perdido votos em vários países da Europa, isso se deve, em grande parte, a um aumento da abstenção ? e não a uma migração direta para partidos reacionários. O segundo equívoco é a crença de que eleitores atraídos pela retórica da extrema direita arão a votar na esquerda, desde que ela adote um discurso linha-dura. A história e os dados mostram o contrário: nesses casos, o eleitorado tende a preferir o original à cópia.

Enquanto isso, o Reform UK avança. Pesquisas recentes mostram o movimento de Farage empatado ? ou mesmo à frente ? dos conservadores, atualmente em colapso político e rendidos ideologicamente. As projeções mais recentes já indicam o Reform UK como possível principal força de oposição, superando os conservadores em intenções de voto.

Nas eleições locais de 2025, o Reform UK conquistou centenas de cadeiras, ou a controlar dez conselhos locais ? equivalentes a prefeituras ? e venceu duas eleições regionais. Em certos cenários, já se vislumbra até a possibilidade de maioria parlamentar nas próximas eleições gerais. Não se trata de um crescimento pontual, mas de uma ameaça concreta ao bipartidarismo que estruturou a política britânica por décadas.

Diante disso, a resposta do Labour soa não apenas ineficaz, mas politicamente míope: ao adotar a linguagem da extrema direita, o partido não a enfraquece ? ao contrário, reforça suas premissas e amplia seu alcance. E o mais grave: o Partido Trabalhista não está acuado. Ao contrário do que ocorre em países como o Brasil, o governo não está refém de um parlamento fragmentado. O Labour tem hoje uma supermaioria em Westminster. Ainda assim, age como se estivesse sitiado ? e, ao responder com concessões ideológicas, apenas alimenta a tendência que diz temer. Não se trata de uma estratégia imposta pelas circunstâncias. É uma escolha ? e, sobretudo, um erro de quem dispõe de capital político, mas prefere gastá-lo imitando os adversários.

Ao naturalizar o discurso da extrema direita, o Partido Trabalhista não apenas cede terreno político: reforça a hegemonia cultural do inimigo. Abandona a disputa pelo que pode ser dito. Pelo que pode ser pensado. Pelo que ainda pode ser imaginado. No entanto, o verdadeiro combate político exige reinventar esse espaço ? construir um novo senso comum. Mais do que isso, talvez o desafio seja ? como escreveu Hannah Arendt ? construir um senso de comunidade, enraizado na pluralidade, na abertura aos que ficaram à margem, aos humilhados, aos que o mundo aprendeu a ignorar.

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