Topo
Notícias

Cogumelo mágico é usado para encarar trabalho, chefes, reuniões e metas

A tatuadora Janaína Boccia usou microdose de cogumelo durante período de transição profissional - Rodrigo Bertolotto/UOL
A tatuadora Janaína Boccia usou microdose de cogumelo durante período de transição profissional Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL
do UOL

Rodrigo Bertolotto

Colaboração para UOL

12/06/2025 05h30

Acordar, comer um tablete de "chocomelo" e meditar por 15 minutos. Depois tomar o café da manhã e enfrentar as tarefas cotidianas. A microdose dos chamados "cogumelos mágicos", misturada com chocolate, não dá nenhum efeito psicodélico. Por outro lado, quem usa diz ter mais calma, foco e criatividade ao longo do expediente.

A reportagem do UOL colheu depoimentos de quatro profissionais que sentiram diferença nas suas atividades após o uso diário do fungo. Três desses testemunhos são anônimos por temor de repercussão no ambiente corporativo.

Quem deu as caras foi a empreendedora Janaína Boccia, 45. "Se não fosse o cogumelo e a meditação, não teria decidido alugar esse local e dado uma guinada na minha vida para virar tatuadora", conta.

Até a pandemia, Janaína era cabeleireira. Presa em casa, com dois filhos pequenos e sem poder trabalhar, ela começou a fazer vários cursos online: costura, culinária, dança do ventre etc. "Eu tinha picos de interesse e depois desistia", lembra. Nessa época, foi diagnosticada com TDAH (transtorno de déficit de atenção com hiperatividade).

Mas com as aulas de tatuagem foi diferente: desenhava e treinava sempre que podia. Encerrada a quarentena, abraçou a nova profissão. E o cogumelo ajudou, segundo ela. "Eu tinha medo de tomar decisões e procrastinava muito. Fiquei mais concentrada, mais intuitiva e com uma melhor percepção de mim mesma", afirma Janaína, hoje atendendo em um estúdio perto de sua casa no bairro do Mandaqui, zona norte de São Paulo.

Janaína Boccia conta que cogumelo e meditação a ajudaram na decisão para virar tatuadora - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Janaína Boccia conta que cogumelo e meditação a ajudaram na decisão para virar tatuadora
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Para garantir o tratamento, ela deixou os "chocomelos" no alto da geladeira, para os filhos pequenos não pegarem, e avisou o marido.

Diretora de marketing em uma empresa do agronegócio, Sara (nome trocado, como o dos dois casos seguintes) tinha dificuldade para encarar as reuniões com seus superiores. "Me sentia muito pressionada, ficava nervosa e não conseguia expor direito os projetos que estava tocando", relatou. "A microdose foi incrível: entrava na reunião tranquila, e saia animada. Não tinha mais taquicardia na hora de falar."

Daniela, executiva em uma multinacional de telecomunicações, também colecionava problemas no emprego. "Estava desanimada, tudo que ava pelas minhas mãos atrasava. O cogumelo teve um efeito sutil, mas a minha produtividade aumentou depois dele."

Já Cíntia, vice-presidente financeira de uma empresa de tecnologia, foi diagnosticada com depressão e estava enfrentando problemas familiares e profissionais. Mesmo medicada, o quadro de falta de vontade e isolamento seguia. Parou com as pílulas antidepressivas e experimentou o cogumelo diário. "O medo constante de perder o emprego se foi, e eu retomei minhas funções como fazia antes da crise", relata.

Para dentro de cabeça

A psilocibina, princípio ativo dominante nesses cogumelos, representa uma das frentes da medicina psicodélica. Essa linha emergente de pesquisa utiliza substâncias que atuam nas ligações neurais para tratar uma variedade de condições de saúde mental, incluindo ansiedade, depressão, dependência química e transtorno de estresse pós-traumático.

Várias universidades renomadas pelo mundo, incluindo EUA, Inglaterra, Canadá, Suíça e Brasil (USP, Unicamp e UFRN são alguns exemplos), estão fazendo testes laboratoriais e clínicos com a psilocibina.

Esses tratamentos alternativos estão em fase experimental e vivem atualmente um período de validação. Em 2023, a Austrália autorizou a psilocibina para casos de depressão persistente.

Ingredientes e utensílios para a elaboração dos "chocomelos" - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Ingredientes e utensílios para a elaboração dos "chocomelos"
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Nos EUA, Colorado, Oregon e Novo México já liberaram o uso para vários quadros psíquicos e até nos cuidados paliativos para pacientes terminais. Outros 22 estados norte-americanos estudam flexibilizar a utilização.

Já no Brasil, os chamados "cogumelos mágicos" estão em um limbo jurídico. Já existe decisão favorável da Justiça Federal desde 2024 para o uso terapêutico, mas a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ainda está em fase de análise para conceder a autorização.

Para complicar, esses tipos de cogumelo não estão nas listas de produtos proibidos pela Anvisa, mas a psilocibina, seu principal princípio ativo, sim —até agora, a substância isolada em laboratório só pode ser usada em pesquisa científica, seguindo os acordos internacionais.

Renascimento psicodélico

"A psilocibina é do mundo da meditação, não da medicina", define Alexandre Leitão, terapeuta que acompanha quem está fazendo o tratamento com os "chocomelos".

Enfermeiro de formação, Leitão começou há 30 anos sua experiência com as terapias alternativas, com utilização de substâncias psicodélicas para a cura. "O uso do cogumelo não pode ser massificado. E não se encaixa na estrutura da indústria farmacêutica, com doses padronizadas. Tem de ser ajustado para cada pessoa, e seus efeitos dependem muito também do ambiente e da situação em que é ingerido", opina.

O terapeuta Alexandre Leitão mostra ingredientes e utensílios para a elaboração dos "chocomelos" - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
O terapeuta Alexandre Leitão mostra ingredientes e utensílios para a elaboração dos "chocomelos"
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

A indicação de um médico e o acompanhamento de psicólogo também são essenciais para o sucesso do procedimento, que dura no máximo três meses. "A pessoa tem que desmamar do cogumelo, e manter para o resto da vida o que aprendeu com a ajuda dele", diz Leitão.

Cada tablete possui em média 0,5 grama de cogumelo, um pouco de gengibre (para a conservação), de vitamina C (para ajudar na absorção) e 125 gramas de chocolate meio amargo.

O recomendado é comer o "chocomelo" de manhã em jejum, para maior eficiência, e meditar 15 minutos, acompanhados com músicas sem letra. Há nele um blend de cogumelos (existem dezenas de espécies psicodélicas), uns considerados mais meditativos, outros mais sensoriais.

As primeiras duas semanas são para ajustar a dose. "A ideia é ter uma sensação de bem-estar, mas sem brisar", afirma o terapeuta que há três anos desenvolve esse tratamento.

Hoje em dia, é comum a comercialização dos "cogumelos mágicos" pela internet, em um consumo mais voltado para o "uso recreativo". Mas antigamente sua ingestão era reservada para rituais espirituais e de cura em várias civilizações, inclusive da Mesoamérica.

Sua popularização começou na década de 1950, quando estudiosos, depois jornalistas e posteriormente turistas norte-americanos visitaram a região de Oaxaca, sul do México, onde era usado pelos indígenas há séculos.

O cogumelo foi abraçado pela contracultura e os hippies nos anos 1960 —e também pela comunidade científica e indústria farmacêutica com muita pesquisa naquele período.

Na década seguinte, acabou proscrito como outras substâncias psicoativas dentro da "Guerra às Drogas", política promovida pelos EUA. Ironicamente, as autoridades norte-americanas estão hoje à frente da reabilitação delas para uso medicinal, começando pela maconha e seguindo pelo cogumelo.

É bom lembrar que a medicina psicodélica, apesar de promissora, ainda precisa de mais comprovação científica, e as pesquisas atuais têm apresentado resultados dos mais variados. Essas substâncias não podem ser encaradas como uma panaceia, e estão sendo estudadas para casos específicos, após tentativa com tratamentos convencionais, e sempre com acompanhamento de profissionais.

Notícias