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Curso de R$ 1.000 ensina a fazer propaganda falsa de produto ilegal com IA

do UOL

Do UOL, no Rio

08/06/2025 05h30

Com a proposta de ensinar a lucrar e viver de renda pela internet, um curso online ensina a produzir propaganda fraudulenta com ajuda de ferramentas de inteligência artificial para vender produtos irregulares. A imagem do médico Drauzio Varella é constantemente utilizada nesses anúncios ilegais.

A reportagem do UOL Confere participou do curso no começo do ano sem se identificar. As aulas foram ministradas em uma plataforma chamada BitesFlix, cujo responsável é Daniel de Brites. Os alunos aprenderam a manipular imagens e fazer chamadas apelativas e agressivas para despertar o interesse de mulheres para comprar um produto que promete emagrecimento fácil, mas que não tem registro para isso.

Eles também são orientados a criar perfis falsos em redes sociais e a forjar engajamento para ar credibilidade. Alguns vendedores chegam a se ar por médicos. Além disso, também usam de forma fraudulenta a imagem da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para afirmar que o produto seria aprovado pelo órgão, o que não é verdade.

A turma de que o UOL Confere participou possuía mais de 600 inscritos no grupo de WhatsApp da mentoria. Cada aluno pagou R$ 1.097 pelo curso. A reportagem gravou momentos em que os professores falam abertamente sobre a manipulação (veja no vídeo acima).

Procurado, o advogado de Daniel de Brites negou que haja manipulação de imagens de famosos em suas aulas, apesar de a reportagem ter presenciado a fraude. Em nota, a defesa declarou que não ensina qualquer prática ilegal (leia mais abaixo).

Curso promete ganho de R$ 1.000 por dia

A promessa do curso é de que as pessoas são capazes de ganhar R$ 1.000 por dia apenas com as vendas online, que são feitas por meio de uma plataforma de marketing de afiliados. A comissão anunciada para o vendedor é de 56% do valor da venda do produto ilegal. Para comparação, lojas como Amazon e Mercado Livre também possuem programas de afiliados, mas as comissões são bem menores, variando entre 10% a 16%.

Ao longo do curso são oferecidas possibilidades de afiliação para três tipos de produtos, mas o mais explorado, tanto nas aulas para manipular vídeo como nas vendas, é o Detox Oriental, um suplemento alimentar que promete emagrecimento. O produto é vendido por valores que variam entre R$ 197 e R$ 697.

O suplemento é produzido e comercializado pela empresa Brites Corp, que tem como sócios Daniel de Brites, o mesmo do curso, e seu primo José Victor de Brites.

Muitos anúncios falsos do Detox Oriental usam a imagem de Drauzio Varella. Em abril, mês em que se encerrou o curso que o UOL Confere acompanhou, havia mais de 300 anúncios ativos do suplemento na biblioteca da Meta, dona de Instagram, Facebook e WhatsApp.

anuncio falso detox maio 25 - Arte/UOL sobre Reprodução Facebook - Arte/UOL sobre Reprodução Facebook
Anúncio fraudulento veiculado em maio e disponível na biblioteca da Meta
Imagem: Arte/UOL sobre Reprodução Facebook

Os alunos são orientados a criar perfis e páginas falsas no Facebook para veicular os anúncios. As contas se apresentam como sendo de especialistas em emagrecimento e chegam a usar imagens de pessoas com jalecos. Alguns até se dizem médicos ao negociar o produto no WhatsApp.

Para ar credibilidade, as publicações são alimentadas com comentários positivos sobre os produtos feitos por outros perfis fakes. Os alunos se ajudam engajando os posts uns dos outros.

A mentoria ensina ainda técnicas para driblar os mecanismos de verificação de autenticidade da rede social e para omitir comentários reais negativos. Os alunos também aprendem a dar calote na Meta por anúncios pagos usando cartões virtuais.

Anúncio falso IA - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Anúncios prometem emagrecimento mágico

"Emagreça 20kg em 10 dias", "perca peso sem academia e sem dieta", "fim da bariátrica", "saiba o segredo das famosas". São com propostas chamativas e irreais que o Detox Oriental é anunciado. Muitas das vezes acompanhadas de vídeos manipulados de famosos.

No curso da BritesFlix, são ensinadas técnicas de manipulação da imagem com uso de inteligência artificial. Os alunos aprendem quais ferramentas usar, como clonar a voz da pessoa, qual o melhor enquadramento de imagem para e como sincronizar a voz com os movimentos labiais.

Por causa de sua credibilidade e fama, Drauzio Varella é a principal figura pública usada pelos golpistas na manipulação de imagem.

É muito assustador você olhar uma pessoa ensinando outros criminosos a praticarem o crime usando a sua imagem. É difícil ar (...) Você é vítima de um crime. É como se alguém chegasse e te desse um tiro. O que você pode fazer contra, nesse momento, quando já levou o tiro? E isso é assim.
Drauzio Varella

Por causa desse tipo de anúncio, Drauzio está processando a Meta e move uma ação junto com o Ministério Público de São Paulo para identificar os golpistas.

Além da de Drauzio, são usadas imagens das cantoras Simone Mendes, Alcione e Maiara, esta da dupla com Maraísa, como se elas estivessem recomendando o suposto emagrecedor. Reportagens e a logomarca de veículos de imprensa, como o UOL, também são exploradas nos vídeos fraudulentos. Os anúncios levam o usuário para uma conversa de WhatsApp, onde as vendas são feitas.

Nem sempre é famoso

O curso também ensina a buscar por perfis de pessoas desconhecidas do grande público, como influenciadores ou profissionais de saúde estrangeiros. Essas pessoas também têm a imagem manipulada para divulgar o produto, mas isso torna mais difícil de o público identificar a manipulação e de a vítima tomar alguma atitude sobre o uso fraudulento da sua imagem.

Esse tipo de manipulação é usado tanto para afirmar que a pessoa é um especialista recomendando o produto ou alguém que supostamente fez o tratamento com o Detox Oriental.

Em um dos casos com que o UOL Confere se deparou ao longo do curso, o vídeo de um médico norte-americano falando em inglês sobre a importância do exame de colonoscopia para o diagnóstico de câncer foi manipulado para que ele aparecesse falando em português sobre os falsos benefícios do produto para a perda de peso.

original x manipulado - Arte/UOL sobre Reprodução - Arte/UOL sobre Reprodução
Vídeo original em inglês sobre câncer (à esq.); imagens manipuladas por IA em português (à dir.)
Imagem: Arte/UOL sobre Reprodução

Suplementos não podem prometer emagrecimento

Além do uso fraudulento da imagem de famosos, suplementos alimentares não podem prometer cura ou tratamento de doenças, segundo resoluções da Anvisa, o que torna este tipo de propaganda irregular.

Os anúncios também usam selos falsos para afirmar que o produto é aprovado pela Anvisa. Suplementos alimentares são vendidos com dispensa de registro, mas medicamentos devem ar por aprovação prévia do órgão regulador.

"Suplementos alimentares são produtos pertencentes à categoria de alimentos e, consequentemente, não têm a finalidade de tratar, curar ou prevenir doenças e agravos da saúde. (...) O consumidor não deve consumir suplementos alimentares com essa finalidade", explica Renata Araujo Ferreira, coordenadora de Inspeção e Fiscalização Sanitária de Alimentos da Anvisa.

"Não existe nenhum suplemento, nenhuma erva natural com esse poder de emagrecer", afirma a endocrinologista Cristina Schreiber, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Segundo a especialista, alguns suplementos podem atuar como diurético, levando a pessoa a perder água, e não gordura. Insuficiência hepática, arritmia, desidratação, risco de AVC ou infarto são algumas das possíveis consequências do uso desse tipo de produto listadas pela médica.

Crimes podem levar a 28 anos de prisão

De acordo com um advogado especialista consultado pelo UOL Confere, há pelo menos cinco tipos de crimes cometidos pelos responsáveis pelo curso. Somadas, as penas máximas poderiam chegar a 28 anos de reclusão.

"Nós estamos diante de um conjunto grave de ilícitos, tanto relacionados à legislação penal quanto às normas regulatórias e éticas", afirma Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos, presidente da Comissão de Direito Digital da OAB-SP.

Os possíveis crimes são:

  • falsidade ideológica, pelo uso da imagem de uma pessoa pública de forma manipulada para vender um produto;
  • violação dos direitos de imagem e crime contra a honra, no caso de danos à imagem e reputação do profissional ou da personalidade falsamente associada ao produto;
  • estelionato, porque tem objetivo de lucro;
  • crime contra a saúde pública pela venda de um produto sem registro na Anvisa, em desacordo com as normas de vigilância sanitária, o que é considerado crime hediondo;
  • publicidade enganosa.

A manipulação da imagem, nesse contexto, intensifica o dolo, porque há uma intenção clara de enganar o consumidor
Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos

De acordo com o advogado, oferecer um curso para ensinar condutas ilícitas além de perpetuar esses crimes, também pode configurar instigação ao crime e até associação criminosa. "Se o curso for sistemático, com alunos, orientações reiteradas, alunos que se tornam professores, há uma associação criminosa. A conduta de ensinar publicamente práticas de crimes utilizando a internet como meio de difusão é considerada um agravante, porque dificulta a defesa da vítima e potencializa a difusão do crime", afirma.

anuncio falso com logo uol - Arte/UOL sobre Reprodução Facebook - Arte/UOL sobre Reprodução Facebook
Anúncio fraudulento manipula imagem de Drauzio, usa logo do UOL e simula checagem
Imagem: Arte/UOL sobre Reprodução Facebook

Brites nega manipulação de vídeo de famosos

Ao UOL Confere, o advogado Arthur Marinho, que representa Daniel de Brites, negou que haja manipulação de imagens de famosos para promover produtos e disse que o uso de inteligência artificial nas aulas tem como objetivo o desenvolvimento de técnicas lícitas de marketing digital como a criação de personagens, conhecida como "seller personas".

Marinho negou que haja incentivo de prática ilegal ou que suas práticas configurem falsidade ideológica, propaganda enganosa ou comercialização irregular de produtos.

Sobre o Detox Oriental, ele afirmou que se trata de um suplemento alimentar em conformidade com a legislação brasileira e com a documentação exigida para oferta no mercado, mas não apresentou essas informações ou a documentação.

"Lamentamos a veiculação de informações inverídicas e sensacionalistas, e permanecemos à disposição para eventuais esclarecimentos adicionais", concluiu a nota enviada.

Procurado, o Ministério Público de São Paulo disse que a ação que move junto a Drauzio está sob sigilo.

A Meta afirmou que atividades que tenham como objetivo "enganar, fraudar ou explorar terceiros" não são permitidas nas plataformas. A empresa recomenda que usuários denunciem os conteúdos.

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